Uma capa para vidas de cem anos: quando a idade conta outra história
Uma reflexão a propósito da reportagem de Jesús Ruiz Mantilla no El País Semanal
No passado domingo, o El País Semanal publicou uma reportagem intitulada “Vidas duras e dias de vinho e rosas: os segredos das pessoas centenárias em Espanha”, assinada por Jesús Ruiz Mantilla. Nas suas páginas, traça-se, com delicadeza e profundidade, algo mais do que um retrato da longevidade: uma constelação de vidas que atravessaram o século sem deixar de olhar em frente.
Josefa, Esperanza, Domingo… São nomes concretos com vozes reconhecíveis. Vivem com mais de cem anos, mas não sob o peso do extraordinário, e sim na continuidade do humano. Falam do seu trabalho, das suas perdas, dos seus hábitos, das suas ideias. Não se definem pela idade, mas pela biografia. O artigo — a que se somam fotografias que convidam à pausa — acerta no essencial: não romantiza, não infantiliza, não mitifica. Escuta.
Entre os dados que acompanham o texto, recorda-se que, em 2024, viviam em Espanha mais de 16.000 pessoas centenárias, e que, nos próximos 50 anos, poderão ultrapassar as 230.000 se a tendência atual se mantiver. O número não pretende alarmar, mas sim chamar a atenção para uma transformação profunda já em curso. A longevidade, queira-se ou não, deixou de ser uma exceção biográfica para se tornar uma dimensão estrutural das nossas sociedades.
O importante não é viver mais, mas viver com sentido
Durante décadas, o debate sobre o envelhecimento oscilou entre a preocupação com a dependência e o elogio do envelhecimento ativo. Mas a realidade, como demonstra a reportagem, é mais rica e mais complexa. Não há uma fórmula secreta nem um padrão único. O que existem são trajetórias de vida tecidas com vínculos, trabalho, perdas, rotinas, uma certa disciplina e uma vontade — mais ou menos consciente — de continuar presente.
Falar de longevidade ativa é, nesse sentido, falar das condições que permitem a cada pessoa habitar o seu tempo com dignidade, segurança e significado, para além do número de anos acumulados.
O estrutural não se improvisa
A reportagem transmite uma ideia que ressoa com cada vez mais força em diferentes contextos: não basta adaptar o que já existe ao envelhecimento. É preciso repensar tudo a partir da longevidade.
Isso implica antecipar — e não apenas corrigir —: investir na prevenção, redesenhar os modelos de cuidados, adequar os ambientes urbanos, compreender os tempos de vida não lineares e garantir que o progresso científico, económico e tecnológico inclua a longevidade como métrica de sucesso social.
Neste contexto, os centenários não são uma raridade: são um aviso lúcido e uma oportunidade de aprendizagem. Se eles chegaram até aqui, estaremos nós à altura do que está por vir?
Um olhar que interpela todas as gerações
O mérito do texto de Jesús Ruiz Mantilla está também em recordar-nos que o futuro não começa amanhã, mas na forma como hoje olhamos para quem já viveu mais. Sempre que retratamos a velhice com compaixão ou condescendência, falhamos. Mas sempre que conseguimos vê-la como parte do “nós” — e não como uma alteridade —, damos um passo em direção a uma sociedade mais íntegra.
Por isso esta capa importa. Porque não é um postal. É um espelho.
Um agradecimento
Num tempo saturado de títulos efémeros, agradecemos que um meio como o El País dedique espaço, tempo e cuidado a narrar estas vidas. E agradecemos especialmente o trabalho de Jesús Ruiz Mantilla, por tê-las contado sem artifício, com respeito e profundidade.
Oxalá este artigo não encerre uma conversa, mas a abra em muitos outros lugares: nas casas, nos centros de saúde, nos governos, nas universidades, nos meios de comunicação… e em cada canto onde ainda possamos perguntar-nos não apenas quantos anos vivemos, mas como queremos vivê-los.
O que queremos realmente dizer quando falamos em “envelhecer bem”?