Reescrever a velhice: do estereótipo ao reconhecimento
A velhice não é um epílogo, nem uma caricatura, nem uma etapa de retirada. É uma forma — plena — de estar no mundo. Mas continuamos a olhá-la com os olhos do preconceito.
Um imaginário construído para excluir
Durante séculos — e ainda hoje — a velhice tem sido representada como o contrário de tudo aquilo que uma sociedade valoriza: beleza, juventude, produtividade, velocidade. Num mundo obcecado pelo novo, o velho incomoda.
Esse desconforto traduz-se em estereótipos, em frases feitas, em decisões políticas, em exclusões quotidianas. O idadismo — a discriminação com base na idade — é, segundo a OMS, uma das formas de preconceito mais difundidas e socialmente aceites. E muitas vezes nem sequer temos consciência de o exercer.
Nem sempre grita. Às vezes sussurra. Disfarça-se de proteção, mas atua como exclusão. Infiltra-se nos serviços de saúde, nos meios de comunicação, nas relações familiares. Não ver os mais velhos como sujeitos plenos de direitos tem consequências reais: menos oportunidades, menos autonomia, menos voz.
Quando o preconceito se torna norma
O dano não termina na exclusão externa. Também se interioriza. Muitas pessoas idosas acabam por acreditar que já não podem, que não devem, que não têm direito. A discriminação transforma-se em renúncia silenciosa.
Estudos recentes mostram que viver rodeado de estereótipos negativos sobre a velhice está associado a pior saúde, maior isolamento, menor qualidade de vida… e até maior risco de morte prematura.
E não é um preconceito isolado. Entrelaça-se com outros: género, classe, raça, deficiência. O idadismo reforça desigualdades existentes e mina a coesão social.
Mudar o relato, mudar o rumo
Mas aquilo que foi culturalmente construído pode ser desconstruído. E reescrito. Não estamos condenados a repetir os mesmos relatos. Podemos gerar novas narrativas: mais justas, mais reais, mais diversas.
A pandemia foi um espelho. Mostrou a fragilidade e a resiliência das pessoas idosas. Expôs as lacunas no cuidado e o valor da sua presença. E deixou uma pergunta em aberto: continuaremos a tratar a longevidade como um problema ou começaremos a reconhecê-la como uma conquista coletiva?
Alguns líderes internacionais pediram que este seja o ponto de viragem. Que deixemos para trás o olhar assistencialista ou decorativo e avancemos para uma cultura do reconhecimento. Uma cultura que compreenda que a velhice não é um bloco homogéneo, mas uma etapa múltipla, ativa, contraditória.
Ações para uma mudança real
Para o conseguirmos, é necessário agir em várias frentes:
• No plano legal: com leis antidiscriminatórias que reconheçam o idadismo como forma de exclusão.
• No plano educativo: incorporando conteúdos sobre envelhecimento positivo e direitos desde a infância.
• Nos meios de comunicação: mostrando a complexidade, a potência e a humanidade da velhice sem estereótipos.
• Nas políticas públicas: garantindo participação, consulta e acesso igualitário.
E, sobretudo, precisamos de mais presença. Mais voz. As pessoas idosas devem ser protagonistas da mudança cultural. Contar as suas histórias. Decidir sobre o que lhes diz respeito. Não como gesto simbólico, mas como parte de um pacto geracional onde o tempo vivido seja reconhecido como capital social.
Uma revolução também cultural
Reescrever a velhice não é apenas mudar a forma como falamos dela. É mudar a forma como a olhamos, como a tratamos, como a projetamos. É compreender que todos nós — se a vida o permitir — seremos velhos um dia.
E que a forma como hoje construímos os relatos sobre a velhice define, no fundo, que tipo de futuro estamos dispostos a habitar.
Porque não existem sociedades longevas sem justiça cultural.
E não há justiça sem representação, sem dignidade, sem igualdade.
A revolução da longevidade precisa também de uma revolução do imaginário.
Uma que devolva à velhice o seu lugar legítimo na vida coletiva.
Nem como fardo.
Nem como decoração.
Nem como epílogo.
Mas como uma etapa plena, viva e necessária do ciclo humano.