26/08/2020

O Gueto Cronológico. Aproximação à velhice a partir de uma perspetiva intergeracional

El Gueto Cronológico. Aproximación a la vejez desde una mirada intergeneracional  - CENIE, Tribuna Abierta

"Creio que nós filósofos aprendemos a pronunciar estas palavras antes de escrever, especialmente sobre a velhice: lembre-se, filósofo, que a sua experiência é a sua própria. Aprende. Seja curioso acerca de pessoas de todos os tipos. Pergunte-lhes como vivem a vida antes de lhes dar um sermão sobre como a devem viver. Esteja preparado para ver significado em vidas que são muito diferentes das suas próprias. Respeite a diversidade.  Martha Nussbaum1

A esperança de vida da população espanhola tanto em homens como em mulheres está entre as mais elevadas da União Europeia e do mundo. Em muitas comunidades, como é o caso na Galiza, o problema parece ser alarmantemente acentuado. No futuro teremos uma população crescente onde, dentro de algumas décadas, devido a este aumento da longevidade, somado a uma taxa de substituição negativa devido a um declínio invulgar na taxa de natalidade, veremos pais com mais de cem anos de idade obrigados a viver simultaneamente com filhos com mais de setenta. A situação agrava-se se considerarmos as mudanças no modelo de estrutura familiar que têm vindo a ocorrer desde os anos oitenta; passando do modelo familiar tradicional, em que várias gerações vivem juntas, para o de uma simples família nuclear, composta por um casal, cada vez com um número menor de filhos, que apesar de tenderem a emancipar-se quando atingem a maioridade, hoje em dia, em muitos casos, isso tem sido adiado devido a problemas de emprego precário.

O modelo de organização sociolaboral2 , por vezes ligado a deslocações geográficas por razões de trabalho, deixa geralmente os pais idosos sozinhos de modo que, perante o primeiro sintoma grave de deterioração funcional ou cognitiva, a única alternativa para os filhos (muito a seu pesar) é que os mais velhos entrem num lar do qual nunca sairão. Morrer em casa, na vizinhança, tornou-se hoje quase um luxo excecional. 

A antecipação para corrigir este cenário parece urgente, pelo que seria necessário desenvolver, a partir de agora, estratégias de coexistência relacionadas com o habitat, coesão social, redistribuição, etc, bem como a articulação de políticas públicas que contemplam o cenário futuro, tanto do ponto de vista da garantia, com vista à manutenção - hoje posta em causa - da cobertura social, assistencial e económica de uma população tão numerosa, bem como outras destinadas ao reforço e articulação de relações pessoais de natureza intergeracional entre indivíduos que vão para além de qualquer componente etária, para que não seja posta em causa a capacidade dos idosos de continuarem a desenvolver o seu próprio plano de vida e o seu direito de decisão, como é o caso de3 qualquer outro ser humano. 

A expressão envelhecimento ativo está na agenda internacional há alguns anos, embora o desenvolvimento de políticas sobre o tema seja realizado de forma desigual de acordo com as sensibilidades de cada administração. Na maioria dos casos, as opções para os idosos resultam de políticas desenvolvidas e testadas em gerações anteriores, sem ter em conta que, em muitos casos, a atitude, as exigências e as necessidades das pessoas que hoje entram na reforma pouco ou nada têm a ver com as dos seus pais. Pensamos que o termo "envelhecimento ativo" necessita de um impulso revitalizante uma vez que, conceptualmente, carrega consigo uma carga de ação que é mais física do que mental, o que se traduz mais do que na realização de um projeto de vida pessoal ou coletiva para a velhice, em atividades específicas destinadas a entreter os idosos e a retardar as suas doenças. Por outras palavras, uma visão da ocupação dos idosos que poderíamos definir como protetora e gerontocêntrica, com enfoque nas atividades dos idosos em conjunto e desenvolvida numa espécie de gueto cronológico onde: pessoas ativas concebem as actividades e os idosos obedecem4. 

Defendemos que os novos modelos de coexistência devem ser produzidos com base nas relações intergeracionais (RI), com vista a permitir aos mais velhos continuarem a desenvolver uma vida relacional e social do tipo intergeracional, como têm vindo a fazer ao longo da sua vida profissional, antes de entrarem na reforma. Há muitas ocasiões em que a perceção do idoso está associada a uma carga de idade que deve ser erradicada. Assim, enquanto parte da Administração faz propostas sob o conceito de "envelhecimento ativo", de outra parte da Administração, os reformados são chamados de "classes passivas". Uma incongruência semântica no uso da oposição ativa versus passiva, que se refere à existência de uma conceptualização bivalente aplicada às pessoas idosas. Tendo em conta o acima exposto, parece urgente desenvolver um pacto intergeracional que, para além de divulgar entre a sociedade a necessidade de sensibilização e reconhecimento positivo do envelhecimento, conferiria poder à velhice como um bem social face às conceções antigas que delegam este grupo a um gueto fora do mainstream, também aborda a necessidade de começar a ensinar sobre o envelhecimento desde a infância para que esta fase da vida possa ser vista como uma parte essencial da vida a que todo o ser humano aspira e, uma vez lá, possa desenvolver-se como um indivíduo social, para além de qualquer tipo de discriminação e com plenos "direitos de escolha". 

Adela Cortina, numa entrevista para La Vanguardia no auge da crise da COVID19 , salientou que este evento pandémico dará origem a um "antes e depois", uma vez que estamos perante um cenário em que para avançar será necessário ter a capacidade moral" e todo o "capital ético" de cada pessoa. Na esperança de repensar o modelo de sociedade baseado numa pedagogia inclusiva, solidária e intergeracional, encerramos esta introdução com outra reflexão de Cortina na mesma entrevista. "Vamos ver se aprendemos que, tal como o campo tem de ser cultivado dia após dia para as plantas crescerem, também temos de cultivar bons hábitos, boas aspirações e hábitos e grandes ideais em cada momento, e não apenas quando surge uma catástrofe aterradora". 

Em referência ao título deste artigo, que faz parte de um trabalho académico, gostaríamos de salientar que o termo gueto cronológico nasceu como uma expressão de autoria pessoal que achei oportuna e provocadora, uma vez que se refere a pessoas separadas e agrupadas involuntariamente num determinado estatuto etário. No nosso caso, os idosos. 

Uma situação que implica uma espécie de isolamento social, que tem uma conotação negativa em relação à velhice e quando não tem, está carregada de discriminação etária. No subtítulo especificamos a intenção de fazer uma abordagem que permita a abordagem dos aspetos experimentais do coletivo mais antigo, propondo um cenário intergeracional como alternativa para a consolidação de um projeto vital e participativo para estes cidadãos. 

Em suma, o "direito de decidir" dos idosos, a "intergeracionalidade" como forma de vida, a "luta contra o envelhecimento" como forma de discriminação etária e a "consciência social", a todos os níveis cronológicos, desde a primeira infância até à idade adulta, num lugar comum onde aprendemos a envelhecer juntos, são os pontos cardeais que levarão cada indivíduo a alcançar o seu "projecto de vida" para além da sua cronologia. 

* Este texto forma parte do capítulo introdutório do meu trabalho final de mestrado (TFM) apresentado em Julho de 2020 na Faculdade de Filosofia da USC intitulado EL GUETO CRONOLÓGICO.

1 Nussbaum, Martha. (2018). Envejecer con sentido: conversaciones sobre el amor, las arrugas y otros pesares. Paidós. p.20

2 [...] cuestiones como la precariedad laboral, el endeudamiento, la inestabilidad de las parejas, los soportes familiares o las políticas de vivienda, junto con la propia agencia y reflexividad de los y las jóvenes, emergen como elementos ineludibles en el análisis de los procesos de emancipación”. Carbajo Padilla, Diego (2017) http://www.injuve.es/sites/default/files/2018/06/publicaciones/revista1… Consultado, 10 marzo 2020, p.12 

3“En la medida en que la infantilización forma parte del estereotipo asociado a la edad avanzada, es frecuente que a las personas mayores se las incapacite de hecho, pero también a veces formalmente sin que, por el contrario, encuentren apoyos en la toma de decisiones y se prevean las adecuadas salvaguardas. Las restricciones que se imponen a las personas mayores en relación con su capacidad para tomar las decisiones que las afectan suponen un inconveniente para la efectividad de todos los derechos reconocidos”. HelpAge International (2020) https://www.helpage.org/spain/noticias/documento-de-helpage-espaa-sobre… n-espaa/ Consultado 14 marzo 2020, p.29 

4[...] la interdependencia y la solidaridad intergeneracionalidad (formas recíprocas de dar y recibir entre individuos así como entre generaciones de jóvenes y mayores) son importantes principios del envejecimiento activo”. IMSERSO, 2011 https://www.imserso.es/InterPresent1/groups/imserso/documents/binario/8… Consultado 3 de enero de 2020, p.501 

5Entrevista en La Vanguardia. (25/03/2020) Adela Cortina .“La sociedad va a cambiar radicalmente después de esta crisis”. https://www.lavanguardia.com/local/valencia/20200325/4891567297/adela-c… ente-despues-crisis-coronavirus.html Consultado, 13 abril 2020