Rumo a uma deriva geracional da saúde em Espanha?
Nas últimas décadas, o avanço da esperança de vida nos países de todo o mundo tem sido espetacular. O caso espanhol merece especial atenção, por se tratar de um país que passou de uma posição particularmente desvantajosa após as calamidades da Guerra Civil para uma posição de liderança mundial nos últimos anos. Enquanto em 1940 a esperança de vida em Espanha era de cerca de 50 anos, em 2025 essa esperança de vida situa-se em torno dos 84 anos (apenas atrás de um punhado de países como a Suíça, o Japão ou a Coreia do Sul).
À medida que a longevidade tem vindo a aumentar praticamente em todo o mundo, surgiu um importante debate, ainda não resolvido, sobre o estado de saúde em que serão vividos os anos de vida “adicionais”. Se a diminuição da mortalidade não for acompanhada por uma redução comparável no aparecimento de incapacidade ou doença, as pessoas tenderão a viver cada vez mais anos, mas em mau estado de saúde — uma dinâmica com enormes consequências para a sustentabilidade dos sistemas de saúde, pensões e cuidados (Gruenberg 1977). Para compreender melhor para que tipo de cenários prospetivos de saúde nos dirigimos, é fundamental documentar de forma detalhada os padrões de aparecimento das doenças que limitam não só a quantidade de anos vividos, mas também a qualidade de vida das pessoas. Para tal, é necessário recolher informação não apenas sobre a prevalência dessas doenças, mas também sobre a sua incidência (ou seja, a que idades começam a desenvolver-se).
Num esforço para lançar luz sobre estas questões, um estudo recente realizado entre o Centro de Estudos Demográficos e a Universidade Pompeu Fabra utilizou os registos de saúde e mortalidade da Catalunha para comparar o estado de saúde entre as diferentes gerações catalãs entre os anos 2010 e 2021 (Permanyer et al. 2025). Os resultados ajustados por idade, comparando o nível de prevalência da multimorbilidade (isto é, a percentagem da população que sofre simultaneamente de várias doenças crónicas), sugerem que as gerações mais jovens tendem a apresentar piores resultados de saúde do que as suas predecessoras na mesma idade. Por exemplo, ao completar 25 anos, 25% das mulheres catalãs nascidas entre 1980 e 1989 padeciam de multimorbilidade “básica” (ou seja, tinham pelo menos duas doenças crónicas). Essa percentagem aumenta para 37% entre as mulheres nascidas uma década depois (entre 1990 e 1999) quando atingem a mesma idade de 25 anos. Este padrão não é exclusivo destes dois grupos, mas repete-se de forma sistemática para todas as coortes e idades em que é possível realizar este tipo de comparação.
Este resultado surpreendente coincide com as conclusões alcançadas noutro estudo recente realizado em diferentes regiões da União Europeia e dos Estados Unidos (Gimeno et al. 2024). Nesse trabalho, observa-se igualmente que as gerações mais jovens tendem a apresentar piores resultados de saúde do que as suas predecessoras na mesma idade, utilizando uma ampla bateria de indicadores (como a prevalência de doenças crónicas e incapacidade, medidas de mobilidade ou obesidade, etc.), pelo que as autoras se questionam se está a ocorrer uma “deriva geracional da saúde”. Os resultados do estudo anterior sugerem que essa deriva geracional pode estar a acontecer na Catalunha e, muito provavelmente, no resto de Espanha.
Estes resultados colocam novos e importantes desafios que é urgente tentar responder. Por um lado, é necessário questionar se a maior prevalência de multimorbilidade nas gerações mais jovens se traduzirá numa pior qualidade de vida ou em níveis mais elevados de incapacidade no futuro. Por outro lado, é preciso investigar os fatores-chave que conduziram a esta situação para a compreender e, na medida do possível, tentar revertê-la. Neste sentido, o surgimento das doenças de saúde mental tem sido um dos elementos que mais contribuíram para o aumento da multimorbilidade na Catalunha — especialmente entre as gerações mais jovens (não por acaso, Espanha é um dos países com maior prescrição de benzodiazepinas e outros sedativos do mundo).
Para complicar ainda mais, é muito difícil determinar se os aumentos observados na prevalência da multimorbilidade se devem (1) a um agravamento “real” ou “objetivo” da saúde subjacente da população, (2) a uma tendência crescente para o sobrediagnóstico entre os profissionais de saúde (O’Sullivan 2025), ou (3) a mudanças nos comportamentos de procura de saúde das pessoas. Estes comportamentos podem, por sua vez, ser influenciados pelos resultados de programas de saúde pública, como as campanhas de rastreio precoce de doenças. Além disso, o aparecimento de novas tecnologias, como as ferramentas de diagnóstico baseadas em inteligência artificial, poderá promover diagnósticos cada vez mais precoces que eventualmente sirvam para evitar a progressão de algumas doenças — provocando assim uma mudança radical na nossa capacidade de deteção precoce da doença. Neste contexto, é imperativo que a profissão médica e os sistemas de saúde em geral promovam um debate profundo sobre o significado que estas descobertas podem ter (por exemplo: como se deve intervir perante a descoberta de que um indivíduo atualmente saudável tem uma probabilidade acima da média de desenvolver uma determinada doença num futuro distante?).
Seja qual for o mecanismo explicativo dos surpreendentes resultados mencionados anteriormente, não há dúvida de que estes refletem um aumento da procura real registada nos sistemas públicos de saúde — um fenómeno preocupante para o qual seria necessário desenvolver políticas baseadas em evidência científica. Para tentar responder às grandes questões levantadas por estas tendências e enfrentar os desafios associados ao envelhecimento populacional, será necessária muito mais investigação sobre os determinantes fundamentais, que poderão variar no espaço e no tempo. Entre outras questões, será necessário recolher informação com um nível de detalhe sem precedentes (combinando dados longitudinais não apenas da área médica/sanitária, mas também características sociodemográficas individuais e contextuais), além de promover um esforço de colaboração interdisciplinar que una os saberes das ciências da vida, das ciências sociais e das humanidades.
Referências
Gimeno, L., Goisis, A., Dowd, J.B. e Ploubidis, G.B. (2024), “Cohort Differences in Physical Health and Disability in the United States and Europe”, The Journals of Gerontology: Series B, Volume 79, Issue 8, gbae113, https://doi.org/10.1093/geronb/gbae113
Gruenberg, E. M. (1977) “The Failures of Success”. The Milbank Memorial Fund Quarterly. Health and Society, 55 (1): 3-24. JSTOR. https://doi.org/10.2307/3349592
O’Sullivan, Suzanne (2025), “A era do diagnóstico. Como a obsessão médica por rotular nos está a adoecer”, Editorial Ariel.
Permanyer, I., Gumà, J., Trias-Llimós, S. & Solé-Auró, A. (2025), “Multimorbidity trends in Catalonia, 2010-2021: a population-based cohort study”, International Journal of Epidemiology (em imprensa).